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Categorias +Entrevista com a Dra. Fátima Conte
Fátima Conte... esse é um nome que todos os analistas do comportamento e a maioria dos estudantes de psicologia conhecem. Se você não conhece, shame on you.
Quando falamos sobre atendimento infantil, terapia comportamental, Psicoterapia Analítica-Funcional (a FAP), o nome da Fátima está presente. Nós aqui do Continuum temos o privilégio de poder compartilhar muito do nosso dia a dia com ela. E, por causa disso, nós criamos uma breve entrevista para que todos vocês possam conhecer mais de perto quem é essa pessoa e profissional sensacional.
Vamos lá!
1 - Fátima, como foi sua formação e por que decidiu atuar como analista do comportamento?
Eu poderia resumir a minha formação indicando meu Doutorado em Psicologia Clínica pela USP de São Paulo, Mestrado em Psicologia Clínica pela PUC de Campinas e Especialização em Análise do Comportamento Aplicada ao Ensino Superior de Psicologia, pela Universidade de UFSCAR, onde tive excelentes professores e supervisores. Mas, na verdade, assim estaria excluindo boa parte daquilo (pra além da família) que me deu e dá a “formação” e sustentação para atuar como analista do comportamento, que vem de todos esses anos de convívio com incontáveis e valorosíssimos colegas e amigos de profissão, partilhando de inúmeras atividades em busca de conhecimento e da superação de barreiras e “pré-conceitos”, da convivência com os alunos que me ensinaram tanto, me fizeram aprender para ajudá-los a aprenderem comigo e ainda, a generosidade dos que se fizeram meus clientes e que , sem duvida, modelaram diariamente “a terapeuta” e a “pessoa “que eu sou hoje.
Decidir atuar como analista do comportamento não foi uma tarefa complicada para mim, porque me pareceu óbvio que fosse dessa forma, assim que tive contato com a A.C., já no meu primeiro semestre da faculdade de psicologia, através dos professores maravilhosos que tive!
Quando escolhi cursar psicologia, queria entender o que levava as pessoas a se comportam como o faziam e saber como poderia prever os seus comportamentos. Isso era decorrente, em boa parte, de uma história de convivência com pessoas de comportamento muito imprevisível, reconheço rsrsr... E eu queria poder aplicar esse conhecimento em minha vida, mas tambem colocá-lo a serviço de outras pessoas, principalmente das crianças e adolescentes ... E eu achava que isso seria quase impossível, ou altamente improvável e exigiria de mim um talento, ou ser capaz de uma certa magia ou algo do tipo, que eu não acreditava ter, mas imaginava que quem sabe, com muito empenho, pudesse desenvolver! Mas, pra minha surpresa, me deparei com uma proposta científica, que me permitiria conhecer esse desconhecido e me desenvolver no que desejava! Me senti quase iluminada, foi como se as pessoas se descortinassem e se tornassem acessíveis a mim.
2 - Qual é o papel que a Análise do Comportamento (ou que você aprendeu com ela) exerce em sua vida pessoal e profissional?
Vejam, pessoalmente, teve, de imediato, um papel fundamental, mudando minha compreensão sobre o comportamento humano, me dando de fato “fundamentos” para minhas ações e direções junto às pessoas relevantes da minha vida. E assim também foi profissionalmente, com a AC tornando-se cada vez mais forte na sustentação da minha prática, a medida em que eu aprendia mais e mais, tanto estudando como observando os resultados das minhas intervenções baseadas nela. Fiz, desde o início, inúmeros tipos de trabalhos, aceitei vários desafios profissionais e essas “práticas” traziam muitas perguntas, levavam a busca de mais conhecimento, estudando sozinha ou com outros profissionais, e esse me indicava caminhos para novas práticas, trazia o desejo de me arriscar e outros settings, etc. Vivi um processo de retroalimentação contínua teoria/prática, estudo, pesquisa/aplicação, ensino/aprendizagem (excluam daqui qualquer dicotomia, por favor), rico demais! Foi uma grande sorte que assim tenha sido para mim.
3 - Quais foram os motivos que te fizeram se dedicar a clínica?
Fui para a clínica por ter sentido que ali realmente era meu lugar, onde eu me sentia melhor, mais segura, onde fazia meu melhor trabalho, com mais independência (muito importante para mim) e podia observar mais claramente os resultados do meu trabalho. Atuei como psicóloga em escolas, com crianças típicas e atípicas, me aposentei como professora universitária e mantive durante toda a minha vida, em paralelo, a atuação em clínica particular, clínica comunitária, ensino da clínica, pesquisa clínica, clínica... clinica ...rsrsrs... pagando para trabalhar, para manter a clínica aberta (que eu dizia ser meu “laboratório”) por anos a fio, assim como outros analistas que começaram a terapia comportamental no Brasil e valeu muito a pena!
4 - Quais são as principais diferenças entre o modelo de terapia usado quando você começou a atuar e o (os) modelo (os) atual (ais)?
Há muita diferença entre o que eu “pensava que fazia, ou fazia” antes e o que eu “penso que e o que faço agora” e também em como me sentia. Eu tinha mais medo, mas ao mesmo tempo, tinha uma confiança quase que ingênua na Análise do Comportamento, da qual sinto saudades muitas vezes, rsrs...
Tínhamos muito menos conhecimento sobre o comportamento humano e a intervenção frente a ele e ao sofrimento psicológico, as análises eram mais simples e as intervenções também, mas não tínhamos um “modelo clínico”. Quando começamos, tínhamos basicamente “modelo da modificação do comportamento”, que era essencialmente uma extensão , aplicação do conhecimento produzido através do método experimental, em ambientes controlados, para solução de problemas humanos. Isso trazia a nós, terapeutas, desafios bastante exigentes, nos levando a buscar, fora da Análise do Comportamento o que nos faltava, enquanto modelo clínico. Também fazíamos, ao atender, exercícios de compreensão, extrapolação de conhecimento, buscas de cientificidade nos processos bastante desafiadores e difíceis, mas ao mesmo tempo, muito interessantes e gratificantes.
A Análise Clínica Comportamental foi tornando-se cada vez mais completa e mais complexa, as possibilidades de intervenção se ampliaram a medida em que tentávamos trazer para a clínica, o conhecimento que era produzido em centros de pesquisa, laboratórios etc. continuamente. Aos poucos fomos entendendo, da perspectiva comportamental, questões relativas à relação terapêutica, ao papel da linguagem e do comportamento verbal, dos encobertos, fatores socioculturais, tanto nas cadeias comportamentais como na determinação e superação do sofrimento humano. Portanto, a forma como trabalhamos tentou estar em conexão com a evolução do conhecimento que era produzido em vários contextos, com muitos benefícios. Eu percebo, hoje, mais claramente , como posso me comportar junto ao meu cliente para que meu comportamento seja realmente terapêutico, não apenas no sentido de me constituir de audiência não aversiva (nem sempre possível, é fato...), mas tambem de tornar meu comportamento estimulação importante para que mudanças comportamentais relevantes do comportamento do cliente ocorram já dentro da sessão, com mais segurança , depois de Kohlenberg e Tsai com a FAP. E todo o conhecimento que vem sendo produzido sobre comportamento verbal, o nosso instrumento maior de trabalho clinico, a partir da Equivalência, de Sidman, da RFT, da ACT com o grupo de Steven Hayes, o que eu entendo por sofrimento psicológico humano e como me proponho a lidar com ele, se modificou, assim como de que forma trabalho com minha linguagem e o meu o comportamento verbal e o do cliente em sessão, como entendo e lido com o desenvolvimento do tantos comportamentos de ordem superior que são importantes, como Self, regulação emocional, esquiva de encobertos, etc., que metas terapêuticas proponho, com a necessidade de clarificação e consideração dos valores, meus e do cliente, etc. Enfim, hoje há mais o que considerar e eu tento francamente, mas entendo que muitas vezes, os recursos me permitem mais ver do que “manejar” o que desejaria e tenho uma certa angústia e saudades da ingenuidade que mencionei no início da entrevista.
5 - O que são terapias de terceira geração?
Bem, eu acabei por descrever um pouco nesse meu relato, como foi, de maneia geral, o meu processo de desenvolvimento enquanto terapeuta analítico comportamental, chegando então até as terapias de terceira geração... e sei que não foi diferente para muitos outros profissionais no Brasil. E esse processo foi ocorrendo gradual e continuamente no tempo, sem um planejamento específico. Durante todos esses anos, estivemos conectados com o Behaviorismo Radical, com um movimento “natural”, mas essa não foi a regra fora do Brasil. Pelo contrário, fora, a partir das observações dos limites da análise do comportamento em seu início e da explosão do cognitivismo, logo em seguida, muitos clínicos comportamentais afastaram-se do modelo e ingressaram em terapias cognitivistas. Em muitos países, as pesquisas continuaram, mas os clínicos estiveram desligados delas. Os modelos e as pesquisas sobre terapia cognitiva cresceram e deu-se seu fortalecimento e reconhecimento muito expressivo no mundo todo.
Posteriormente, já nos anos 80 em diante, os conhecimentos que vinham sendo estabelecidos (que mencionei acima) com base nas pesquisas que estavam sendo realizadas e iam gradualmente afetando e modificando a pratica de muitos terapeutas brasileiros, acabaram por propiciar a construção de “novas “propostas ou modelos terapêuticos por profissionais fora do Brasil, como a ACT e a FAP, principalmente. A elas, Hayes e outros nomearam de Terapias da Terceira Geração ou Terapias Contextuais, considerando a “fase” da Modificação do Comportamento e Terapia Comportamental, como de Primeira Geração e as Cognitivas, como de Segunda Geração da Análise Clínica Comportamental.
Para mim e outros brasileiros, isso fez pouco sentido e até certa irritação, quando vimos isso sendo proposto quase como uma “revolução”! Nos identificamos os processos que fazíamos ali, nossa forma de trabalhar, embora considerássemos o avanço que, principalmente a ACT e a FAP traziam, mas não era uma “revolução”! Não houve ruptura aqui no Brasil como houve fora, com a chegada das terapias cognitivistas, daí toda a estranheza. Tambem contribuiu para essa estranheza, o fato de que a ACT foi proposta sem conexão, sequer, com a linguagem comportamental. Hoje já se observa em todo o planeta, um cuidado em reconhecer as raízes das comportamentais das terapias contextuais, tentando descrever os processos e princípios comportamentais que estão ali implicados. Com a FAP tivemos mais sintonia.
6 - Qual a importância de entender e estudar as terapias de terceira geração?
Não acredito que haja como não as estudar hoje, se você quer ser um analista clínico-comportamental, mas não se deve começar por elas. É preciso conhecer a Análise do Comportamento, enquanto ciência, seus processos de produção de conhecimento, o conhecimento acumulado, tanto “básico” como “aplicado/ clínico” ou corre-se o risco de realizar uma prática ritualizada e sem análise funcional, o que é traz muito perigo para quem a aplica e a recebe. Não se trata de um conjunto de técnicas novas que funcionam por si ou um protocolo de etapas. Tudo que se há de fazer na clínica depende da análise funcional. Não dá para fazer intervenção sem análise ... em que se estaria intervindo? Junto a quem? Quem é esse indivíduo? Como se configura o seu sofrimento? Topografia nao define conduta terapêutica analítico-comportamental ... Não se pode ter as contextuais como um modelo ou protocolo que se aplica passo a passo ou ao invés de ... Elas são propostas que incorporam e organizam um conhecimento clínico e conceitual que é importante, que já vinha sendo produzido e incluído na prática clínica, principalmente se considerarmos os analistas brasileiros, mas não para que se aplique automaticamente.
Elas trazem sim, avanços, como colocarem luz sobre comportamentos que são importantes e eram pouco explorados por nos, terapeutas, na clínica, como “self”, valores, aceitação, esquiva experiencial, trazem ferramentas para intervenção, mostram recursos importantes que se encontram na relação terapeuta-cliente, esclarecem e ajudam os terapeutas a trabalharem sobre eles, favorecem a nossa compreensão e intervenção comportamental junto aos encobertos, permitem uma melhor compressão e consideração de peculiaridades das dificuldades de indivíduos de diferentes culturas e sub culturas, favorecem uma macro analise funcional mais eficaz por parte dos terapeutas, propõe um avanço no alcance dos resultados e indicam caminhos, etc. Então, por isso e muito mais, não há como não estudar ou não estar em contato com elas, mas continuando a ser um analista do comportamento e se lembrando de que são propostas em estudos, que sabemos pouco ainda sobre o que de fato elas nos trarão, embora os resultados de aplicação, as bases e as perspectivas hoje sejam excelentes. Posso ficar falando sobre vantagens até amanhã, rsrsr.
7 - Quais dicas você dá para graduandos e graduados que querem refinar a sua prática clínica?
A primeira coisa que me ocorre é que façam uma proposta para si mesmos, de buscarem vincular claramente o seu trabalho com a análise do comportamento, os seus conhecimentos científicos, discussões teóricas, filosóficas, consumindo as pesquisas etc., enfim, buscando sempre uma fundamentação sólida e a mais atualizada possível sobre a qual edificarem a atuação.
Na clínica, para fazermos a análise e a síntese comportamental, caso a caso, tendo o cuidado de consideramos as especificidades e a amplitude comportamental de cada cliente, como requer nossa proposta, precisamos desenvolver várias habilidades e dentre elas, se sobressai, para mim, a de observação refinada, o olhar comportamentalmente treinado, privilegiado. Ele nos permite levantar-se e nos manter conexão com o que for relevante, importante. A observação é, para mim, a chave comportamental para que o terapeuta consiga “imergir” na relação com o cliente e no caso, manter-se “dentro” da interação quando adequado e “emergir”, colocando-se fora provendo o distanciamento que se fizer necessário à condução do processo terapêutico. A observação tambem o ajuda a discriminar o que é o relevante em cada momento. Acho que a nossa formação tradicional é pobre nesse treino e temos que buscar recursos para suprir essa falha, sendo que a supervisão, a psicoterapia pessoal, a frequência a cursos, grupo de estudos, a manutenção de relações de cooperação com os pares, são alguns deles.
E nessa linha, tem muitos outros aspectos pessoais que precisamos desenvolver ou cuidar para trabalharmos bem. A clínica pode ser um “lócus” muito solitário, no qual, naturalmente, não temos com quem partilhar e discutir nosso trabalho. E eu não acho o trabalho clínico analítico comportamental fácil, embora adore! Acho que esse trabalho nos desafia continuamente, nos lembra, todos os dias, que nunca estamos ou estaremos prontos, nunca saberemos tudo, não seremos sempre os melhores para todos os clientes que nos buscarem, por mais que nos preparemos, porque cada cliente é dono de uma riqueza comportamental única, vive num contexto e tem uma história pessoal que não partilhamos. Em muitos momentos aguentar a constatação disso, da nossa inadequação, a depender da maneira com que ela nos é mostrada, é muito difícil. Tambem somos humanos e então, é difícil ter a lucidez e a coragem necessárias para seguir em frente quando isso ocorre.
Temos limites, o nosso cansaço, as pressões do dia a dia, inclusive financeiras, e elas podem nos trazer uma certa cegueira e regidos por elas, não reconhecemos nossas vulnerabilidades e limites e podemos nos colocar em riscos que não deveríamos. Há tambem a nossa vaidade, quando tudo vai bem demais e podemos nos esquecer de que aquele “sucesso” não se construiu sozinho, que tivemos clientes de mãos dadas, outros externos envolvidos e que, muitas vezes, o “acaso nos protegeu enquanto andávamos distraídos” ... (atenção aos acasos, eles merecem estudos, mas eles sempre existirão! Eu acho rsrsr...). Isso para não falar da necessidade de nos mantermos, em nosso trabalho, a despeito de todos esses processos, buscarmos sempre estar estruturando relações reforçadoras positivas junto aos nossos clientes, nesse nosso “minimundo”.
Então, dica: faça seu grupo de suporte e o mantenha! Nos temos de presente, a confiança dos nossos clientes e com isso, um tanto de responsabilidade. Quebre a solidão e desenvolva a cooperação, estude junto, discuta seu trabalho, regule a sua emoção com apoio de seus pares.
Enfim, acredito que formação técnica continuada nos torna melhores e terapeutas, assim como o desenvolvimento pessoal e para isso, valorizo, além da busca de conhecimento na área, a terapia, a supervisão, a cooperação entre pares. Para mim, essa é a base de um terapeuta eficaz e saudável, que tenta manter uma vida profissional e pessoal de qualidade! Desejo ter ajudado! Um abraço a todos!
Dr. André Connor de Méo Luiz
Coordenador Acadêmico - Instituto Continuum